Desdobramentos da magia: Uma análise
introdutória e suas representações no Cristianismo Primitivo[1]
Albertino da Silva Lima[2]
Resumo
Não há uma pesquisa sem um intuito
diretivo, e a maioria são permeadas por pressupostos, afim de alcançar o
objetivo desejado. A preocupação fundamental ao tecer esta pesquisa, foi
produzir textos com conteúdo polissêmicos acerca da magia de um modo geral e
depois, mais especificamente no Cristianismo Primitivo. E isto só foi possível,
com o auxílio de literaturas apócrifas, pois contém em suas narrativas
exposições mais coerente e conclusiva sobre o tema abordado.
História
e conceituação da Magia
O assunto a ser abordado é
demasiadamente delicado principalmente no campo religioso cristão, pois, este
termo não soa harmonicamente aos ouvidos de seus adeptos. Há inúmeras discussões
sobre o aspecto hierárquico, de quem veio primeiro: a magia ou a religião? Para
alguns estudiosos a magia surgiu dentro de pesquisas de fórum religioso, pois,
para outros, a magia antecede a religião. Dados e conteúdos históricos
sinalizam para a história antiga da civilização, onde reza a lenda de que
homens eram visitados assombrosamente por seres espirituais e estes apelavam
por socorro nos rituais mágicos praticados pelos seus sacerdotes.
Ao
sair da “história enquadrada” nos relatos bíblicos sobre a origem da humanidade,
e utilizando fontes históricas mais amplas, obtemos contatos com relatos de
povos que viviam na bacia dos rios Tigre e Eufrates, que tinham como
naturalidade cotidiana a prática da magia muito antes do conceito “religião”. O
imaginário demoníaco já fazia parte de seu contexto social; com assombrações,
espantos e interferências direta no viver físico. A luta entre as forças do bem
e do mal, não é iniciada nos textos bíblicos, ela os antecedem, de acordo com
Kurt Seligmann “os demônios eram poderosos, capazes de matar o homem e o
animal, embora lhes fossem impossível destruir completamente a vida ou
perturbar de forma permanente a ordem da natureza”[3]. O ritual mágico era feito
não somente com atos físicos e visuais, a palavra também era um tipo de recurso
prático de evocar a magia. Palavras de cunhos mágicos muitas delas sem nexo
ortográfico, eram presentes nesses rituais praticados pelos: babilônios,
sumérios, acadianos, egípcios, medos e persas.
Ao trabalhar os aspectos místicos da
magia Carlos Sell e Franz Bruseke tomam partido da tese que defende a magia
como antecessora da religião, para este fim, eles se embebedaram do conteúdo
sobre a magia nos conceitos desenvolvidos por Marcel Mauss (1852-1950) que
também teve influências de teóricos como: Tylor, Wilken, Hartland, Frazer,
Jevons, Lang e Oldenberg. Os estabelecimentos desses diálogos foram importantes
para Sell e Bruseke no direcionamento de suas pesquisas relacionados a
hierarquia primaz da magia sobre a religião, vejamos o seguinte texto:
Uma
delas, formuladas por Frazer, é de que magia representava o primeiro estágio
mental do primitivo, unindo todo um universo místico /religioso e cientifico de
forma embrionária. A religião teria surgido, nesta perspectiva, da experiência
mágica, que não conseguiu a resistência do mundo contra suas formulas e rituais[4].
Ao
chegar a esta afirmativa sobre a primazia da magia, foram envolvidos vários teóricos
pesquisadores deste tema, e nisto percebemos a delicadeza do assunto. Esta
afirmação não se deu repentinamente e de forma aleatória. Houve diálogos
maçantes. Apontar o ponto de gênese da magia não é o interesse dos autores, mas
a aproximação por meios de pressupostos, que engendra a uma possível
descoberta. Observando a citação à cima percebemos que a origem da magia está
ligada ao imaginário e não ao material/visível. Talvez essa seja a objeção da
descoberta do seu ponto inicial. Por isso, embrionária. Na concepção dos
autores com seus teóricos em discussão, a religião surge como ferramenta de
estudo para a magia e suas experiências, e não o contrário.
Atento para as discussões acerca da
magia, observo que pelo seu lado renegado pela sociedade ela se torna obtentora
de caracteres não religiosos, trazido pela Idade Média com suas ideias,
interligando a magia ao diabo e seus demônios. Tecer uma preocupação sobre o
lado dogmático da magia, torna-se em perda de tempo, visto que ela não se
prende a isso. Mesmo que aparentemente seja o contrário, a magia se ocupará com
suas manipulações e com os resultados extraídos por elas. A conclusão rápida de
Sell e Bruseke é que “a magia não gerou instituições como a religião, não se
complexou como ela, não fundamentou uma igreja”[5]. O uso deste termo
“complexou” evidencia uma problemática embutida na religião devido a sua
institucionalização, o que não houve com a magia; na concepção dos autores esse
é um ponto bastante positivo para a história e prática da magia.
Diálogos e interface da Magia em relação
a Ciência
As práticas mágicas antecedem a
religião e até mesmo a ciência. Não é uma falácia essa afirmação, visto que nas
civilizações antigas era frequente o uso de ervas para a produção de
tranquilizantes, pílulas anticoncepcionais e outras drogas que sofriam
manipulações para uso medicinais. Já é possível perceber a problematização que
deriva destas composições magia/religião e magia/ciência, fora detectado e
destacado por via de pressupostos a antecedência de práticas magicas antes do
conceito que temos de religião; agora percorreremos o mesmo caminho no diz
respeito ao caráter antecessor e contribuinte da magia para a ciência.
Não é preciso ir muito longe para
perceber que a magia surgiu antes da ciência “legalizada”, no território
brasileiro vimos na cultura indígena a manipulação de ervas para fins
medicinais. Nos povos primitivos isso era recorrente. Já que o tempo
considerado como a “Era da Ciência” foi no século XVI com o advento do
Iluminismo, como se dava o procedimento para a obtenção de curas? É neste
ínterim que entra em cena o mago e o curandeiro, com o uso demasiado de suas
técnicas para a elaboração de produtos com efeitos mágicos, que lá na frente serviu
e serve como contribuinte indispensável para a evolução das ciências
farmacêuticas e medicinais; como relata Jacques Bergier no prefácio do livro A História da Magia de Kurt Seligmann
“Frequentemente os antigos magos percorreram, antes de nós à sua maneira, os
caminhos que a nossa ciência está em vias de redescobrir”[6].
O descaso e a negação que fazem
contra a magia, limita a sua contribuição. Não é somente na esfera religiosa
que a magia é repudiada e mal aproveitada para fins de pesquisa, a ciência
incorreu no mesmo erro.
Apesar
dos imensos investimentos e da criação de laboratórios que empregam dezenas de
milhares de investigadores, a indústria farmacêutica está ainda longe de ter
explorado a fundo o tesouro das receitas mágicas. Os magos dos povos ditos
primitivos levam em certos aspectos séculos de avanço sobre os métodos da
Química. Os índios da América do Norte dispõem de pílulas anticoncepcionais
verdadeiramente eficazes. Os africanos têm medicamentos abortivos que atuam no
segundo e inclusive no terceiro mês de gravidez sem qualquer efeito
desagradável para a saúde[7].
Trata-se, de uma crítica a ciência
atual. Essa crítica é ponderável para a aceitação da relação existente entre
ambas e a pouca exploração exercida sobre a magia e os possíveis benefícios
extraídos dela, pelo simples fato dela anteceder a ciência. Tanto do lado
religioso ou científico a magia tem muitas objeções, não é uma tarefa fácil
trabalhar este tema, mas, nem por isso deixa de ser prazerosa. O que temos é
uma breve história introdutória sobre a magia, que pretende elucidar os
leitores iniciantes no tema, com o intuito de proporcionar uma aproximação não
preconceituosa tanto do termo quanto das práticas.
Magia e aparatos técnicos
A magia está envolvida no mundo
místico, a sua prática é inerentemente concebível em lugares que aparentemente
são inapropriados, porém são embutidos de forças atributivas para o seu
desenvolvimento. Em larga escala, dá para atrelar muitas magias, à qualidades e
habilidades técnicas, porém, ela não se limita simplesmente a isso. Carlos Sell
e Franz Bruseke tratam com peculiaridade esta dicotomia existente entre magia e
técnica, pois, o fascínio trazido pela magia, assemelha-se ao da técnica[8].
Como dito antes, os autores seguiram
a tese e o pensamento de Marcel Mauss, para estruturar seus assuntos
relacionados a magia e seus desdobramentos. O uso de palavras repetidas, o nome
próprio da pessoa envolvida no processo mágico, manipulações de objetos, sangue
e vísceras de animais sacrificados e outras técnicas vistas nos rituais
mágicos, são técnicas que ajudam a praticar e desenvolver a magia na ótica de
Mauss.
Por
outro lado, Mauss destaca o caráter eminentemente técnico da magia, que resulta
da sua intenção de impor as coisas à própria vontade. Essa técnica mágica consiste
em um conjunto de manipulações de objetos, aplicações de fórmulas secretas e
outros procedimentos, enfim, um rito que segue uma causalidade magicamente
entendida. Não surpreende, então, que a voz do feiticeiro faz ceder a chuva e
uma “simpatia” corretamente aplicada faz desaparecer as verrugas. Aceitamos
como bastante valiosas as incursões de Mauss sobre o “mana” e sobre o caráter
“técnico” e “causal” da Magia[9].
Entende-se dentro da fala dos dois
autores que, a magia não se sustenta somente com seus conceitos e práticas, ela
precisa do auxílio da técnica para um melhor desenvolvimento. Dissociar a magia
da técnica é uma tentativa sem sucesso, devido a sensibilidade produzida pela
técnica nas manipulações de objetos que beneficiam diretamente a magia. Então,
é preciso um olhar crítico por detrás da magia, afim de descobrir o aspecto
técnico maquiado por ela.
Bíblia e Magia
Raramente,
os leitores dos textos bíblicos vão para eles com a mente neutra, muitos se
aproximam deles contaminados com diversas interpretações e já fazem um
julgamento precipitado do que encontram no interior da narrativa. O ato de
falar que existem textos que comprovam a presença da magia, talvez não seja
muito agravante, desde que, seu aspecto tenha um caráter negativo. Já, um leitor
informado com bases ainda que sejam básicas de hermenêutica, se direciona ao
texto com sua mente “pura”, afim de extrair dos mesmos informações diretas do
próprio, sem ser contaminado pelas que já existem.
Ao
tocar no assunto magia e relacioná-lo
com a bíblia, nos remetemos diretamente a textos que tem a magia como algo
contrário ao divino; nos lembramos dos magos egípcios Jannes e Mambres diante
de Moisés, de Simão Mago e seu duelo com o apóstolo Pedro e do apóstolo Paulo
com o mago Bar-Jesus, chamado Elimas. E o que chama a atenção é esta disputa
entre o bem e o mal, o diabo e Deus e a magia versus o milagre. Os exemplos
citados são tendenciosos à negação da magia, pois, Moisés, Pedro e Paulo com
respaldo divino saem vitoriosos dos seus duelos, criando na magia uma imagem
adversária.
Deixando
de lado esses textos com vertentes tendenciosas, e nos atentando à textos que
são poucos explorados, detectamos a presença da magia não como aliada ao mal,
mas praticada por importantes personagens bíblicos que fizeram uso dela para a
obtenção do bem. Vejamos o exemplo citado por Kurt Seligmann:
O
patriarca Jacob realizou a seguinte operação inequivocamente mágica: quando
dividiram os rebanhos, Jacob e o sogro, Labão, concordaram que este ficasse com
os animais não malhados e aquele com todas as cabras malhadas. <<Então
Jacob procurou alguns ramos novos de choupo, amendoeira e plátano e
descansou-os de forma a deixer-lhes faixas alternadas escuras e claras.
Colocou-os depois nas caleiras dos bebedouros quando os animais vieram beber>>.
A seu tempo, os animais copularam e <<as fêmeas conceberam diante das
varas e tiveram crias listradas, salpicadas e malhadas>>. Jacob serviu-se
desses paus listrados de acordo com o princípio mágico de que o igual produz o
igual: ramos listrados produzem listas na pele dos animais. Não foi, por
conseguinte, pela intervenção divina que alcançou a sua riqueza; não foi um
milagre que originou as malhas no gado do patriarca, mas sim os seus
conhecimentos de magia[10].
Falando objetivamente, o desafio
está posto para a busca de uma compreensão abrangente sobre o que a bíblia diz
em relação a magia, e a não se atar a relatos tendenciosos. O leitor “impuro”
não consegue detectar este outro lado da magia. Muitos ao terem contato com
este trecho, romantizam-no atribuindo as conquistas de Jacó como um milagre ou
uma benção divina. De início é estranha esta afirmativa de Seligmann, mas aos
poucos ela vai se encaixando e mostrando um outro lado da magia. A bíblia na
maioria de seus textos referidos a magia ela se mostra como opositora, não
obstante, outras passagens como esta citada acima revelam um outro quadro.
A representação da magia para os
Hebreus e suas confluências religiosas
A história do povo Hebreu, se inicia
segundo o texto bíblico nos vales férteis dos rios Tigre e Eufrates, este povo
não possuía paradeiro territorial e oscilava entre cativeiros e exílios, que
por sua vez interferiam diretamente em seu viver religioso. Sabemos que o
monoteísmo não é uma prática iniciada pelos hebreus que antes eram politeístas,
adotaram essa prática dos egípcios e fizeram dela sua raiz religiosa. Com o
monoteísmo em voga as demais religiões passaram a sofrer distanciamento e
repulsa. A idolatria que era um ato normal de culto dos babilônios e assírios
passou a ser vista como algo impuro, assim como a magia. Principalmente nos
cativeiros, os hebreus eram obrigados a abandonar a sua fé e induzidos a
prestar culto à outras divindades. Seligmann diz:
A
religião mosaica, à semelhança da cristã, opôs-se à magia como força que se
intrometia ilicitamente no poder divino. No entanto, uma vez que ela própria é
resultante da magia, o seu ritual contém muitos elementos cuja origem mágica
mal pode ser negada. O milagre bíblico não difere inteiramente dos prodígios
mágicos que figuram na Sagrada Escritura e apenas se distinguem pelo facto de
num caso intervirem a vontade e ajuda de Jeová, ao passo que no outro se dá a
participação do espírito do mal[11].
A hipótese que está posta, revela
que a origem religiosa hebreia e cristã teve influências mágicas, e para
Seligmann é impossível dissociar a magia da religião dos hebreus. Em suma, é a
partir de conceito e interligações que a magia vai tomando forma negativa, ela
está associada ao mal, quanto o milagre, seu opositor, se ata ao bem. Dentro
desta discussão proposta por Seligmann não há diferença entre magia e milagre,
a diferença se encontra em quem os provocam.
O contexto social e religioso dos
hebreus está permeado de contatos e atos mágicos; Moisés perante faraó praticou
magia, Jacó usou de artifícios mágicos para enriquecer, José praticava
hidromancia, esses fatos mostram que a religião hebreia não está desvinculada
do que eles mesmo desaprovam.
Jesus: milagreiro ou mago?
No
Antigo Testamento, vimos a presença de homens como Moisés, Elias, Eliseu e
outros que praticavam milagres e porque não dizer magias, e o contato com a religião
traz esses afluentes para a vida do religioso que busca a cada dia uma nova
experiência religiosa. A figura de um milagreiro ou um mago representa a
diversidade das expressões religiosas como define Paulo Nogueira; “Diante dessa
diversidade, tudo acaba por ser devidamente abordado e classificado por
ideologias dualistas que classificam expressões do religioso como forças do bem
ou forças do mal, com todos os correlatos que lhe cabem: justiça – injustiça,
libertação – opressão, nacionais – estrangeiros, desenvolvidos – atrasados,
humanizadores – desumanizadores etc[12]. E dentro deste contexto
atrevo-me a acrescentar milagre – magia.
O campo religioso tem destes
dualismos, e ao traçar um pensamento classificatório acerca da figura de Jesus
é preciso ter atenção para não tirar o que não pode ser tirado, isto é, nuances
mágicos da vida e ministério de Jesus e correlaciona-los milagres. O que classifica socialmente Jesus como
milagreiro é a sua afirmação como divino, isto, claro para os seus adeptos,
pois para os seus adversários ele era um mago. Esta taxonomia, é de âmbito
totalmente social e de partidarismo religioso.
Justamente por causa da posição da magia
enquanto uma religião subversiva, extra-oficial, censurada e, muitas vezes, de
classe baixa, empreguei deliberadamente a palavra magia, ao invés de algum eufemismo, em todas as seções deste livro.
Elias, Eliseu, Honi e Hanina eram magos assim como Jesus de Nazaré. É
fascinante ver teólogos cristãos descreverem Jesus como um milagreiro, ao invés
de um mago, e depois tentarem estabelecer uma diferença objetiva entre as duas
categorias. O caráter tendencioso desses argumentos aponta para uma necessidade
ideológica de proteger a religião e seus milagres da magia e seus efeitos[13].
A desafiante tarefa deste artigo é
justamente seguir esta direção proposta por John Dominic Crossan, de quebrar
esta rotulação posta sobre Jesus quanto milagreiro e não um mago, a intenção
não é desconstruir a imagem divina de Jesus, mas propor um diálogo fornecido
pelas diversidades de expressões religiosas e de fazer enxergar na pessoa de
Jesus um milagreiro e praticante de magia. Cuspir no chão, fazer uma lama e por
nos olhos de um cego e este depois enxergar não seria uma magia? Transformar água
em vinho; um milagre ou uma magia? De pende de quem vê. Para os discípulos e
cristãos foi um milagre, mas para os adversários e pagãos foi uma magia. Porém,
até mesmo para os discípulos de Jesus isto era uma tarefa difícil de se
compreender, segundo a análise de Crossan “Creio, em suma, que o aspecto mágico
e milagreiro de Jesus era um fenômeno problemático e controverso não só para os
seus inimigos, mas também para os seus amigos”[14].
Práticas e representações da magia no
Cristianismo Primitivo
Segundo
a história, Jesus é fundador e líder do que hoje conhecemos como cristianismo,
ao iniciar o seu ministério ele chama doze homens e os conclama de apóstolos,
homens que largaram seus afazeres dispostos a tornarem-se seus discípulos. Como
bem sabemos, o ministério de Jesus foi marcado por ensinamentos e prodígios;
como milagres (magia) e exorcismos. Diversos pontos narrativos neotestamentários,
relatam Jesus outorgando aos seus discípulos poder para fazer obras semelhantes
à dele (Mc 6:7; 16. 17:18).
Este aprendizado teórico e prático
proposto por Jesus foram bem assimilados pelos seus seguidores, tanto em
palavras quanto em obras, vimos isso mais explicitamente na vida de Pedro,
Paulo e de alguns discípulos após o Pentecostes. Seções de manifestações do
poder divino eram corriqueiras no cristianismo nascente como; a presença da
parresia, a cura de enfermos, ressurreição de mortos, expelimento de demônios e
outros sinais produzidos pelos discípulos de Jesus com a sua autorização. Esses
acontecimentos faziam parte do cotidiano social e religioso daquela época. Uns
faziam com a legitimação religiosa e outros não, e é neste ponto que surgem os
rivais de Jesus, dos discípulos o do cristianismo por eles implantado e
divulgado. O campo religioso sempre foi disputado até os dias de hoje, tanto
religiosos quanto políticos viam neste cristianismo uma ameaça para as suas
organizações, mesmo que social e religiosamente ilegais como é o caso da magia.
Na Grécia Antiga, não era somente a
filosofia que circundava a sociedade, a magia também era notoriamente uma
atividade religiosa e social indispensável. O pensamento filosófico serviu de
influência e propulsão da magia, tendo Platão e Aristóteles como filósofos
principais. Platão tinha uma ideia sobre o mundo de maneira bem utopicamente
poética, e porque não dizer mágica. Há, pois, um entrelaçamento entre a magia e
a filosofia na Grécia Antiga. Segundo Seligmann “As antigas crenças mágicas que
haviam enriquecido a vida da humanidade foram revestidas pelos filósofos com as
belas roupagens da razão. A maioria dos filósofos, todavia, tal com os membros
de todas as classes sociais, entregava-se à magia e superstições populares”[15]. O ato de recorrer às
práticas mágicas não era somente um caminho da sociedade simples e pobre,
homens com conhecimentos e nomes conceituados faziam dela um meio de flerte com
suas funções, principalmente os filósofos.
Já na Roma Antiga a magia tinha uma
oscilação, alguns aceitavam e outros não, e entre os imperadores muitos se
opuseram a magia, tendo-a como religião não oficial e perigosa ao império, esta
posição deve-se, talvez ao seu relacionamento com a filosofia Grega a qual não
eram bem aceita pelos imperadores romanos. Por outro lado, outros imperadores
se aliaram a magia e se fizeram participantes dela como: Nero, Augusto, Marco
Aurélio, dentre outros.
No contexto romano a magia está
entre aceitações e repúdios, tanto na sociedade comum quanto no palácio, ela
era tida como um meio de obtenção de sucesso para alguns e para outros ela era
vista como uma prática do mal e enganadora, onde muitos magos se autopromoviam
e criavam seus grupos e seitas que aos poucos iam crescendo e se tornavam uma
ameaça à Roma e ao seu império.
O cristianismo nascente está no meio
de um eixo religioso, político e cultural conhecido como Roma e Grécia. Ao se desenvolver neste meio, o cristianismo
está num entrave religioso onde a prática da magia é presente, ainda que ilegal
ela exerce uma influência considerável no imaginário e na vida da sociedade
cristã e pagã tanto romana quanto grega. Vejamos o que Seligmann diz a
respeito:
Ainda
pouco tempo antes, Mecenas havia estigmatizado a magia como uma instigadora da
revolta. Estas opiniões contraditórias, proferidas no século I da era cristã,
atestam o facto, de que a magia exercia ainda nessa altura uma acentuada
influência em todos os espíritos: ela era motivo de risos e de medo, de
desprezo e admiração. Toda a gente estava interessada na magia privada; ninguém considerava oportuno
criticar o culto oficial, apesar do
facto de a religião codificada do estado não passar de magia legalizada[16].
O autor revela o que representava a
magia no século I, e acrescenta:
A magia privada tornara-se um negócio em
Roma; em troca de dinheiro, os Caldeus distribuíam o bem e o mal. O seu saber
abastardava-se continuamente. Todavia, a magia exercia ainda uma influência
poderosa e os gnósticos e neoplatônicos que aceitavam as suas ideias e
cerimônias mágicas congregavam crentes por toda parte. Os neoplatônicos,
alarmados pela expansão do cristianismo, arvoravam-se nos novos defensores da
magia pagã. Uma parte integrante do seu culto era a teurgia, a chamada à
terra dos demônios bons[17].
Recorrendo a Seligmann, temos uma
noção prévia de como se encontrava de um modo geral o ambiente dos territórios
onde se iniciara o cristianismo. A magia aceita ou não estava presente,
legalizada ou ilegalizada era praticada; por um sacerdote ou por um mago. Entretanto,
não se pode negar a influência e interferência da magia no cristianismo primitivo e o que ela
representava para seus adeptos e opositores. Talvez, seja por isso que temos
poucos textos neotestamentários de classificação canônica que se enveredam
neste assunto, mas nem por isso ele se torna inútil. As ferramentas fornecidas
pelas Ciências da Religião, nos permitem ir além dos textos canônicos e
adentrar na literatura cristã primitiva, não levando em consideração os seus cognomes
apócrifos.
Magia e literaturas apócrifas
Os escritos considerados canônicos têm uma aceitabilidade incontavelmente
maior dos que são chamados apócrifos, talvez esse fato se deva ao difícil
acesso a estes, ou de repente, esteja ligado ao processo de iniciação na fé
cristã, que logo conceituam os livros que não entraram no cânon bíblico como
heréticos. E infelizmente esta postura, nos privam de obtermos conhecimentos
mais amplos que não são fornecidos pelos livros canônicos. Ao pesquisador
religioso não cabe fazer distinção preconceituosa sobre tais livros, e sim
utilizá-los para a elaboração de pesquisas que visam promover conhecimentos,
ainda que estranhos, porém, uteis.
Para Paulo Nogueira,
De fato, os textos que hoje chamamos de
canônicos já passaram por processos de tradução por meio de textos que
convencionamos chamar de apócrifos. Ou seja, os gêneros (evangelhos, atas e
apocalipses) sofreram interferências sincréticas de gêneros helenísticos
(viagem aos infernos, combate entre magos) e de temas folclóricos (os milagres
deixam a discrição da tradição judaica para se tornarem mais fantásticos e
exibicionistas). Um estudioso preocupado somente com as tradições originárias,
mais antigas, pode se sentir pouco interessado no estudo da literatura
apócrifa. Mas, se para um cientista da religião interessado em aumento de
informação (diga-se informação histórica da cultura!), em inserção de enredos,
temas, personagens, em narrativas que traduzem os textos bíblicos do passado
para as novas gerações (no caso do Novo Testamento), os apócrifos se tornarão
fontes imprescindíveis para o estudo do próprio Novo Testamento[18].
Torna-se
visível nesta exposição a importância do manuseio de literaturas apócrifas para
uma compreensão e interpretação mais concisa e plausível de assuntos e
temáticas do Novo Testamento. Quero me prender ao “combate entre magos” citados por Nogueira, que tem uma abrangência
e consistência bem maior nestas narrativas apócrifas, que irão encorpar esta
pesquisa. O que temos sobre magia nos textos canônicos é bem efêmero e
inconsistente. Relatos encontrados em textos canônicos tem algumas exposições
inconclusas, como os relacionados à magia.
O livro dos Atos dos Apóstolos conta
a história inicial do surgimento da igreja, dos apóstolos e de alguns reveses;
no capítulo 8, Lucas insere na sua narrativa uma perícope[19] que envolve assuntos
relacionados à magia, porém, o livro canônico não se aprofunda na história e
por isso não relata como se deu o seu desfecho. É neste ponto que entram em uso
as literaturas apócrifas, com a finalidade de propor uma conclusão mais
detalhada sobre o assunto. O conteúdo da perícope proposta por Lucas, relata um
duelo entre o apóstolo Pedro e o mago Simão, uma disputa de magias.
Outra literatura que contém os
mesmos personagens são as Pseudo-Clementinas, nelas a disputa entre Pedro e
Simão mago se dá no âmbito teórico acerca de Deus e de seus tratados. Pedro
defendia a ideia da Unidade de Deus, por outro lado, até com uso das Escrituras,
Simão afirmava a existência de outros deuses que segundo o seu discurso, o
próprio Deus assim os chamavam. O segundo capítulo da homilia XVII, menciona a
acusação que Simão faz a respeito de Pedro chamando-o de servo da maldade, e de
ter grande poder na magia aponto de encantar as almas dos homens, muito pior do
que a idolatria.
O texto mostra o apreço da multidão
por Pedro após seu discurso, o que despertou em Simão um sentimento de vergonha
perante o povo. Segundo o autor da fonte, Simão discursava com o intuito de
agradar o povo, porém Pedro falava a verdade, e por isso foi ovacionado pelos
seus ouvintes. Nota-se, a ênfase que a fonte dá não se restringe somente a
magia, há uma atenção direcionada aos discursos sobre as Escrituras que ambos
proporcionaram. Esta abordagem que o texto faz sobre a acusação de Simão sobre
Pedro como mago e enganador é vista também nos Atos de Pedro, muito embora seja em outro enredo.
Os Atos de Pedro é um texto apócrifo
que tem os apóstolos Pedro e Paulo como personagens principais, e a sua
proposta é de revelar as acusações que Simão fizera sobre Pedro, afirmando que
ele era um mago e enganador. A diferença e a motivação das magias praticadas
por ambos são explícitas nesta fonte. As magias de Simão segundo os Atos de
Pedro são direcionadas para o exibicionismo e sem utilidades; fazendo a
serpente de bronze e estátuas de pedra se moverem, quando por outro lado, Pedro
curava os enfermos, expulsava demônios e ressuscitava mortos, isto é, praticava
a magia com fins mais úteis.
O autor do relato deixa claro que as
magias de Simão estavam apoiadas com auxílios de demônios, ainda que que ele
fazia afirmações que era o filho de Deus descido dos céus. As disputas de magia
entre Pedro e Simão ocasionaram na intervenção do imperador Nero. E em
comparação com a narrativa canônica de Atos dos Apóstolos que não cita a presença
de Paulo ao lado de Pedro na cena, o autor do apócrifo menciona a presença do
apóstolo como parceiro de Pedro perante Nero e Simão.
Os martírios de Pedro e Paulo
deram-se devido a disputa final com Simão Mago, e de acordo com a literatura
apócrifa, foi neste episódio que Nero acusou os apóstolos como responsáveis da
queda e morte do Mago. A fonte conta o frustrante voo de Simão, que fora
interrompido com a oração de Pedro, que mereceu até homenagens na igreja de
Santa Francisca Romana, e justamente neste local era comemorado o acontecimento
do voo e da queda do Mago, que tinham como memória, duas pedras de basalto como
o sinal dos joelhos de Pedro o autor da oração que interrompeu a magia do Mago
Simão.
Estas breves exposições de
literaturas apócrifas trazem importantes significações sobre a magia e o que
ela representava para os primeiros cristãos. Não há como tecer conteúdos
expressivos sobre uma temática como esta sem o auxílio desses textos, existem
elementos culturais intrigantes e indispensáveis para um diálogo construtivo na
esfera científica/religiosa. Por isso, falar sobre magia no aspecto
histórico/religioso sem manter uma interlocução narrativa com essas literaturas
é um erro que não pode ser praticado por um estudioso e cientista da religião.
Conclusão
A magia não é uma temática exclusiva
do Novo Testamento, existem registros de atos e práticas mágicas também no
Antigo, e este foi um dos objetivos traçados por esta pesquisa, de primeiro
explicitar conceitos e conteúdos históricos acerca da magia e logo depois
demostrar a sua existência antes mesmo do conceito “religião” e “ciência”. Me atentei
cuidadosamente para o aspecto tecnicista da magia, pois direcionei os olhares
não somente as influências espirituais, contudo, quis traçar uma visão crítica
e não tendenciosa acerca da magia.
Procurei não ocultar o lado negativo
e positivo da magia, não obstante, é visto exemplos de personagens do Antigo e
do Novo Testamento que usufruíam deste recurso, inclusive Jesus e seus
seguidores. É forte fazer esta afirmativa, porém, é necessário. Não achei justo
fazer rodeios e correr da responsabilidade, poderia me utilizar de outros
termos como: Curandeiro, taumaturgo e milagreiro, mas resolvi para o bem da
pesquisa explicitar brevemente o lado mago do filho de Deus.
A magia permeou todo o contexto do
cristianismo primitivo, não só na esfera religiosa, como também na política e
na economia como foi abordado pelas literaturas apócrifas que carregam em suas
narrativas um conteúdo bem mais abrangente do que as canônicas. Portanto, o
objetivo central está em promover uma aproximação não preconceituosa sobre a
magia afim de demostrar as suas representações no Cristianismo Primitivo.
Bibliografia
BERGER,
Klaus. Psicologia Histórica do Novo Testamento. São Paulo. Paulus, 2011.
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NOGUEIRA,
Paulo Augusto de Souza, (organizador). Linguagens da Religião: desafios,
métodos e conceitos centrais. São Paulo. Paulinas, 2012.
SELIGMANN, Kurt. História
da Magia: Magia, sobrenatural e religião. Lisboa. Edições 70, 1974.
ZABATIERO,
[1]
Monografia apresentada à
disciplina Ciências da Religião, II semestre de 2015, com vista a aprovação na
disciplina.
[2] Mestrando em Ciências da Religião
pela Universidade Metodista de São Paulo – UMESP. Bacharel em Teologia pela
Faculdade Unida – Vitória – ES. Licenciado em História pela Universidade do
Grande Rio (UNIGRANRIO) – RJ.
[3] SELIGMANN, Kurt. História da
Magia: Magia, sobrenatural e religião. Lisboa, Edições 70, 1974. p 9.
[4] SELL, Carlos Eduardo. BRUSEKE,
Franz Josef. Mística e Sociedade. São Paulo. Paulinas, 2006. p 170.
[6] SELIGMANN, Kurt. História da
Magia: Magia, sobrenatural e religião. Edições 70. Lisboa 1974. p 10.
[8] SELL, Carlos Eduardo. BRUSEKE,
Franz Josef. Mística e Sociedade. São Paulo. Paulinas, 2006. p 169.
[10] SELIGMANN, Kurt. História da
Magia: Magia, sobrenatural e religião. Edições 70. Lisboa 1974. p 39.
[11] SELIGMANN,
Kurt. 1974, p 38.
[12]
NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza, (org). Linguagens da Religião: desafios,
métodos e conceitos centrais. São Paulo. Paulinas, 2012. p 15.
[13] CROSSAN, John Dominic. O Jesus
Histórico. A vida de um Camponês Judeu no Mediterrâneo. Rio de Janeiro. Imago,
1994. p 342.
[14] CROSSAN. 1994. p 348.
[15]
SELIGMANN, Kurt. 1974, p 67.
[16] SELIGMANN, Kurt. 1974, p 98.
[17] SELIGMANN, Kurt. 1974, p 99.
[18]
NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza, (org). Linguagens da Religião: desafios,
métodos e conceitos centrais. São Paulo. Paulinas, 2012. p 26.
[19] Júlio Zabatiero conceitua este
termo dentro de uma linguagem técnica, que em seu sentido literal significa
“cortado ao redor”, usadas para a organização dos documentários exegéticos,
preparação de sermões, dissertações, teses etc. Uma perícope é, assim, um
pequeno trecho bíblico usado para o estudo e a comunicação da Bíblia.
ZABATIERO, Júlio. Manual de Exegese. São Paulo. Hagnos, 2007, p 33.